.Na gaveta dos sonhos
Com puxadores feitos de lâminas dispostas numa geometria defensiva
Nos olhos banhados por ventos ora salgados, ora ácidos
Que se condensam em lágrimas que jamais irás compreender
Mãos de Pai
Arrastadas por uma pele semeada de frio
Olhos de Mãe
Sepultados no brilho fátuo daquele olhar
Abraço escorreito e difuso
Mas apertado como jamais irás compreender
No jardim estéril que é o futuro
Nas palavras tuas decifradas por entre o silêncio
Num passado demasiado estreito para alcançar.
Dedicado a Luiz Pacheco, embora aposte que ele quer que eu me foda.
.[A] Escuridão escorrega dos céus de fim de tarde
Ruas presas ao anonimato repletas de um vazio construído de corpos desnutridos de sonhos
Ausência de ossos que sustentem a mais ínfima esperança
No panteão da vida a corrosão transforma memórias em pó espalhado-o aleatoriamente pelo vento
Acordas e nada resta de ti, nada te sustenta
Divago por encruzilhadas de ruas de uma forma confusamente desenvolta
Divago como se soubesse exactamente como me perder
Os candeeiros com a sua luz baça não passam de uma forma tétrica da luz
Escolho um canto recôndito para mijar
O mijo mistura-se com a réstia de chuva apodrecida pelo chão da cidade
Às tantas formam um pequeno lago deveras particular: detritos angustiados de mim na sujidade bolorenta da cidade
Cuspo lantejoulas de sangue
Doem-me os pulmões, constantemente triturados por este ar indecoroso
À noite a cidade é a espasmos deliciosa
A solidão invade-a, o vento faz bailar pedacinhos de fuligem provenientes da combustão dos sonhos
Caminho-a para me esconder de mim, dos outros, sei lá do quê
Caminho mas não posso fugir ao lodo em que imprimo os passos, que me manipula os passos, que me prende
Árvores de princípio de Inverno ossos daquilo que foram na primavera
Penetram bem fundo no lodaçal que me sustenta
Aliás, alimentam-se e fodem com ele
Fodem que nem uns danados e provocam espasmos telúricos mesmo por baixo do lodaçal
[lençol]
Aqui estou eu sem nada e para nada
Ausente e não totalmente alheado
Amedrontado por viver
Tremem-me as pernas e quase me sucumbem as carnes
Sou
Quase prostrado
Mas não é desta que me deitarei na posição fetal neste chão, neste lodaçal.
.Os céus, os milhares de céus que a ti se sobrepõe
Supra-situado corre um rio de sangue cósmico
Repositório de energias brutais capazes de te ferver o teu sangue
Imagina o sangue fervente a queimar-te por dentro adentro
Animado pelo coração dolente
Corre em ti o fogo que te consumirá a carne fraca e o mais sólido dos ossos
Existe uma fornalha em ti, alimentada e comandada durante instantes-luz
Nos silêncios que ousas ouves o rastejar da luz pelas frestas das portas do teu universo alternativo
Tomas algo, que nem sabes o quê, como perdido
Perscrutas o buraco negro que há em ti
[Para o caso de não existir inventas astutamente um]
Percebes como a vida pode ser vã e curvilínea
Como pode descrever circunferências que seguem o rasto de um qualquer abismo
Numa espiral que começa e acaba num inferno
[Algures entre uma miríade de infernos inventados, resta um mais sublime e perene]
Canto soltado pelo bailado das estrelas
Ignorado pelos teus ouvidos mas consolador para os outros sentidos
Sente e quase o podes ouvir
Sente-o e quase podes sorrir
Morres e continuará a existir
Abre as asas e sente o bulir dos ventos remotos gemendo pelos perfis alados
Voa para lá de ti e sonha
Sonhos que só tu podes sonhar
Que fluem e findam em ti e para ti
Ensaia a esperança com alguma fluidez
Em sentido estrito, em sentido lato
Fá-la rimar com algo abstracto
Mas agarra-la
[Com a tua mão abstracta]
Assim terás o substrato da esperança
Destila-o à custa do suor que te cruza a epiderme
Eis as tuas asas
Nascidas da mais pura Alquimia antropomórfica.
A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.